sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A morte de Ambrósio Kaiowá

"Liderança Guarani Kaiowá do acampamento Guyraroká foi assassinado a facadas em sua própria aldeia, a caminho de casa"


Ruy Sposati
do Cimi

Ambrósio Vilhalva foi assassinado a facadas às 20h30 da noite de 1º dezembro, em sua própria aldeia, a caminho de casa. Sua morte é triste e complexa. Propomos aqui três apontamentos para refl etir e para tentar compreender a morte de Ambrósio – e seus últimos anos de vida. O primeiro está relacionado à terra.
Guyraroká é um território retomado pelos Kaiowá. Em 1990, um grupo de 30 famílias que viviam confi nadas na reserva Tey’kue, em Caarapó, conseguiu ocupar 60 hectares de uma das fazendas. Dali foram expulsos e permaneceram por quatro anos na beira da estrada, até que conseguiram voltar para a área.
Estudos antropológicos confi rmaram a tradicionalidade do Guyraroká: 12 mil hectares foram identifi cados como terras originariamente ocupadas por aquelas famílias. Em 2009, o Ministério da Justiça publicou uma portaria declaratória, reconhecendo a área como efetivamente indígena.
O segundo apontamento está relacionado aos impactos do processo histórico imposto aos Guarani Kaiowá de perda de território e do confi namento nas reservas. Estas experiências foram traumáticas, transformaram abruptamente seus modos de viver. Diminuíram e alteraram profundamente a qualidade e o sentido da vida destas pessoas.
Nesse contexto, bem como o aumento da taxa de suicídios, o uso compulsivo de bebidas alcoólicas proliferou com bastante força, atingindo centenas de Kaiowá desde então. Para suportar as tentativas de disciplinamento por parte do Estado e do capital, embriagar-se ou se matar transformaram-se em saídas. E Ambrósio bebia muito.
O terceiro apontamento tenta dar cabo do elemento mais trágico e grotesco da história: Ambrósio, segundo informações preliminares, teria sido assassinado por indígenas – e não por pis toleiros. No último período, a liderança vinha sendo alertada pela comunidade sobre os problemas que o uso compulsivo de bebidas alcoólicas traziam. Ambrósio vinha se tornando cada vez mais hostil com os indígenas da aldeia. As memórias dão conta de que antes ele não era assim. Ambrósio era um bom yvyra’ja (aprendiz e auxiliar) do pai, seu Papito, tekoa’ruvixa (ou ñanderu, o rezador tradicional Kaiowá) da comunidade.
Em 2008, Ambrósio foi um dos protagonistas do longa de fi cção Terra Vermelha, co-produção italiana e brasileira sobre a tragédia Kaiowá. Bastante elogiado, o fi lme teve cinco nominações (entre elas, para o Festival de Veneza) e duas premiações. Ambrósio viajou bastante em função das agendas extensas de divulgação do fi lme.
Após a exposição e a circulação do Kaiowá em festivais, espaços políticos e outras esferas, em diversos países, ele teria fi cado assim, avesso, conforme indígenas que conviveram com Vilhalva.
Sob severas privações em seu tekoha (terra) diminuto, a circulação de Ambrósio pelas extensas arenas por onde Terra Vermelha o levou teria acentuado as dissociações causadas pela invasão das terras Guarani Kaiowá, alçando Vilhalva a uma imagem difusa de si próprio.
Outros atores do fi lme também têm sofrido problemas semelhantes. Os produtores de Terra Vermelha possivelmente desconhecem esse fato, e muito menos anteviram os efeitos que a velocidade estonteante com que Ambrósio foi solapado provisoriamente de seu universo social causariam.

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